domingo, 26 de abril de 2015

XXXVII- Identidade

Estava pensando no tema para ser o último texto desse blog. E aí me veio essa ideia, a identidade.

Lembro-me da Sol, uma das maiores colegas que tive no curso de psicologia, me falando a respeito disso: de identidade. Conversamos o quanto esse conceito é diferente do de "personalidade", já que este levaria em consideração aspectos além do psiquismo.

No entanto, não quero ficar discutindo essas teorias aqui. Aliás, todo o intuito desse blog foi pensar sobre mim sem a necessidade de ficar toda hora recorrendo a expedientes teóricos e citações de coisas que aprendi. Ainda que eu não possa pegar essas coisas e jogá-las para vala, supondo uma "espontaneidade" do meu pensamento.

Quando o Morcegão, professor de redação da quinta série, me pediu para fazer uma redação sobre "Quem sou eu" eu fiquei puto. Tinha um roteirinho que ajudava, com perguntas específicas e em cima dela seria feita a redação. Queria imitar minha mãe, que no colégio também se irritou com tal tema e ao invés de fazer um texto sobre "eu", escreveu uma redação sobre "nós". Eu na verdade não me lembro exatamente o que eu escrevi, mas sei que naquele bimestre levei nota vermelha. Depois recuperei, mas o tal professor do tênis rosa surrado ficou maldito nas minhas lembranças.

Ironicamente, anos depois estaria eu com meus blogs. Pensando sobre mim mesmo. Eu que tenho horror a esse "eu mesmo", que me parece algo tão cristalizado. fixo. Naquela mesma época um colega de sala - uma das pessoas mais detestáveis que conheci, pra ser sincero - disse que eu e outros dois amigos tínhamos a capacidade de não nos parecermos com uma identidade a nenhum grupo fixo: não éramos playboys, não éramos os militantes politizados, metaleiros, ou seja lá qualquer outra coisa que pudesse existir naqueles tempos.

O mais irônico é que alguns anos depois meu ex namorado diria algo parecido, mas como se fosse um defeito meu. Ele se vangloriava por se identificar com algo, achava que isso era sinal de uma "personalidade". Na época me senti pra baixo. Hoje dou risada em relação a isso e me sinto bem por ser assim, por ser quem eu sou, por não estar certo sobre quem eu sou, como diz o Caetano naquela entrevista pro programa Vox Populli da TV Cultura de 1978.

E esses trinta e sete textos me fizeram pensar, como pequeninos recortes, sobre alguns temas que julguei interessantes mencionar e a partir dele falar um pouco mais de aspectos pessoais. Alguns feitos no puro improviso, outros herméticos e confusos que nem eu entendo ao relê-los, outros feitos em dias de maior inspiração. Mas o que é a vida se não isso, nesses 37 dias, anos e tantos outros textos, sejam os que lemos por escrito, sejam aqueles que lemos pelo mundo, com os nossos sentidos.

Para todo o resto, é seguir caminhando...

Ps: Caso alguém se interesse, meus demais textos estão no meu outro blog, que pretendo retomar com mais regularidade no meu trigésimo oitavo ano incompleto ;)


sábado, 25 de abril de 2015

XXXVI- Vaidade

A primeira vez que pensei em vaidade fui logo para questão física. Mal de gordo. Acho que por vezes me sinto bem com meu peso, aí por outras olho e vejo "ah, não to bem, gordura não combina comigo". Aí hoje me olho no espelho e penso: ok, estou mais gordo, mas to um tesão.

Depois fui para outros pontos, outras formas de vaidade. Um amigo meu reclama de outro que faz questão o tempo todo de mostrar o quanto aquilo que ele compra é caro. E se algo acabou de lançar, manda logo um link com o site do preço do produto caríssimo dizendo que vai comprá-lo.

Eu acompanho meu feed nas redes sociais e estamos todos lotados de vaidade. Especialmente com aquilo que se pensa. Somos tão vaidosos que por vezes parece que uma opinião tida como errada equivale a ser destratado na aparência. Algo como: sua cara está horrível.

Tenho ultimamente observado muitas coisas e me pronunciado menos. Talvez o que eu precise de fato é explorar coisas novas. Algo que equivale a mudar de aparência. Aliás faço até um gancho com minha própria vida. Explico melhor.

Creio que na adolescência ser gordo foi algo que me deu uma ilusão de me proteger de qualquer possibilidade de perguntar: por que você não sai com mulher? Vi um rapaz comentar isso num daqueles programas da MTV americana que passava na década passada e me identifiquei com isso na hora.

Depois as roupas. Sempre em tons mais escuros. Sem graça. E com o tempo fui pedindo ajuda a amigos que entendiam melhor dessas coisas e tal. Hoje já sou capaz de ir na loja e saber escolher o que quero, o que fica melhor pra mim, sem precisar me esconder em cores sem graça. Tudo bem, posso passar horas fazendo isso. Porém faço com mais autonomia.

Nunca entendi aquela frase "tudo é vaidade". Mas talvez ela esteja certa. Nossas postagens, nossas roupas, nossas ideias, nossas opiniões, nossos gostos, nossa família, nossos amigos, tudo que investimos parte de nós mesmos é vaidade. E esse blog também é, definitivamente, um exercício de vaidade.


sexta-feira, 24 de abril de 2015

XXXV- Saber

Saber, derivação imprópria. O verbo que implica uma ação se torna substantivo. Se torna nome. E os nomes determinam seres e coisas. Ganham existência. O que antes poderia determinar um movimento, uma energia (Força x Deslocamento) acaba se tornando matéria.

Uma das expressões mais interessantes que um amigo criou foi "casa do saber" para se referir à motéis. E não tem nada de citação a filósofos, psicanalistas, nada disso, foi uma expressão espontânea da parte dele.

Lembro-me de aos 11 anos, vendo a novela Tieta, a personagem na primeira fase dizendo que iria aprender o "ipisilone duplo". O "beabá". Como o sexo tem dessas coisas de aprendizado, uma situação de desconhecimento que se torna conhecida.

O que tenho percebido, ao longo desses 37 dias, é de que maneira eu lido com a sexualidade em mim. Qual o "saber" que tenho de mim mesmo. Sei que isso é algo que me acompanha desde criança - guardadas as devidas proporções do desenvolvimento em cada idade- ao passo que na adolescência a minha (homo)sexualidade se insere nos saberes dos outros, saberes sociais que fazem com que ela seja mais que reprimida, mas devidamente enquadrada e disciplinada.

Após o começo da minha vida adulta e quando finalmente pude exercer minha sexualidade com alguém, ela irrompe como um rio calmo que depois vem uma chuva e voilá, tem se um tromba d'água. Me reencontro de certa forma com aquele saber lá da infância, mas agora de forma diferente, adulta, com as responsabilidades que ela traz.

Talvez uma das cenas mais lindas que já tive com alguém, sexualmente falando, foi nós dois nus nos olhando no espelho. Eu olhando para seu corpo e ele para o meu. Apenas isso. Operando os nossos saberes, conhecendo um ao outro, ou, quem sabe, já traduzindo, melhor que qualquer alfabeto, o que nós estávamos sentindo um pelo outro naquele momento.

E indo mais longe, esse "saber", no fim das contas é um saber de um Outro, de um Outro que habita dentro de si. O saber, não importa se ele é furtivo como uma gozada num canto escuro proibido da madrugada ou no casamento mais duradouro pode ser- digo pode, porque nem sempre estamos dispostos a isso- uma profunda experiência de auto conhecimento. Acho que estou somando mais algum ao meu.



quinta-feira, 23 de abril de 2015

XXXIV- Saudades

Saudade, obviamente tem muito a ver com apego. Muitas vezes já vi o quanto esse é um dos sentimentos que mais mexem comigo, desde criança.

Eu me recordo de quando criança eu estava em outro estado com minha mãe passeando. Meu pai não pôde ir com a gente e ficou em casa cuidando da minha irmã, que só tinha 2 anos na época. Eu me lembro do quanto chorei de saudade ao escutar a voz dele no telefone.

Situação parecida eu senti anos depois, já no fim da adolescência, certa vez quando dormi em uma casa de veraneio, quando passei um feriadão com amigos. Curiosamente, na mesma cidade onde moro hoje. Me peguei em uma noite pensando na minha mãe. Não tinha uma razão específica, era só saudade da presença dela.

Hoje fiz uma coisa que nunca tinha feito antes com um namorado. Uma coisa com cara de antiga, dos tempos da infância quando as pessoas iam nas praças, ainda que em grandes cidades: sentar no banco para comer cachorro quente. Tudo bem que foi um x-tudo, mas ainda assim, ao sentar naquele banco e olhar a paisagem ao meu redor, com uma chuvinha fininha de outono em um feriado no qual as ruas estavam vazias e o shopping principal da cidade estava cheio.

O banco era bem defronte ao antigo prédio. Lembrei-me da primeira vez que conheci aquela parte da cidade. Era uma novidade, uma euforia me tirando da mesmice dos fins de semana habituais na cidade onde moro. Até porque era uma nova fase: um novo namoro.

Daí me peguei pensando sobre isso, sobre uma certa saudade daqueles dias. Ao mesmo tempo não me dei conta de novos dias que estão para chegar. E que por vezes a saudade pode mostrar exatamente uma pessoa, uma situação, um lugar que de alguma maneira foi significativa para mim, mas mostra que agora o momento é outro, outras situações para deixar novas saudades.


quarta-feira, 22 de abril de 2015

XXXIII- Rebeldia

33. A idade de Cristo. Rebelde ou alguém que veio reiterar a velha Lei?

Eu me lembro de quando eu vi "Os Embalos de Sábado à Noite" pela primeira vez. Foi na televisão e eu devia ter uns 6, 7 anos. Lembro-me pouco da trama em si, apenas das cenas de dança, mas uma cena em especial me chamou a atenção: quando o Tony briga com o pai para poder sair. Não me lembro exatamente a razão, mas sei que eu adorei aquela cena. Queria fazer o mesmo. Eu criança, de saco cheio de ter que ouvir tanto não e levar porrada, poder um dia ser um jovem adulto e falar o que eu quisesse que eu não poderia levar uma surra.

Ao longo da vida transitei entre ser aquele que está dentro das normas ou se no fundo era um rebelde. Na sala de aula era o CDF (norma) que sentava com a turma do fundão (transgressão). Alguns amigos pensam que sou extremamente diplomático, que sou incapaz de quebrar com as regras estabelecidas. Minha irmã acha que faço tudo o que meus pais sempre mandaram eu fazer.

Ironicamente minha mãe e a minha tia, que me amamentou, pensam exatamente o oposto. Acham que tenho um gênio forte e só faço as coisas do jeito que eu quero. Um ex-amor já me disse que sou muito radical.

Sobre esse tema, talvez, a real transgressão seria simplesmente não me importar se fulano, beltrana ou seja lá quem for, pensa a respeito disso. Se é legal transgredir, se é certinho estar dentro das regras. Pensar nisso aliás não é nem quebrar com o tão falado "sistema", mas é transgredir comigo mesmo.

Ps: Ironicamente, em 27 de abril de 1978, a música número 1 era justamente do filme que menciono ;)



terça-feira, 21 de abril de 2015

XXXII- Padrões

Hoje de tarde fui fazer um pudim. E eu estava muito preocupado em não estar seguindo corretamente a receita, quando a pessoa amada me diz: você se preocupa muito com o padrão das coisas. Acabou que no fim nós dois juntos fizemos uma receita ótima de uma maneira diferente da habitual: o invés de fazê-lo no forno, ele foi feito no fogão.

Mais tarde um rapaz evangélico me diz que o "homossexualismo" é pecado. Ele faz todo um malabarismo, dando um ar científico às questões religiosas. Diz que se diferencia dos seus pares por não achar que os direitos devem ser negados, que homossexuais deveriam sofrer qualquer forma de violência, mas constrói um malabarismo para dizer que a Bíblia diz que é pecado.

Interessante ver como são padrões e uma necessidade de seguí-los, de mantê-los à risca. No meu caso com a receita eu tenho uma explicação que consigo entender: sigo as receitas que me foram ditas por insegurança. Quando eu desconheço um determinado prato, a maneira como ele é feita, enquanto eu não a domino, eu prefiro seguir a receita. E quando eu já entendo como posso fazê-la, aí sim me sinto seguro para poder modificá-la. Fico mais à vontade.

Penso no rapaz que fala sobre o que é ou o que não é pecado. Não quis entrar no mérito da religião dele, pois penso duas coisas: uma é a liberdade de religiosa e outro é até que ponto essa liberdade fere dos direitos de alguém. Pelo menos ele se mostrou interessado em saber mais, se abrir mais. Se ele estiver de coração aberto.

No frigir dos ovos, a visão dele sobre as orientações e identidades sexuais cabe a ele perceber.  A mim, cabe quebrar com certos padrões e por outro lado ficar mais fortalecido, pois há pessoas querendo impor os seus, para as outras


segunda-feira, 20 de abril de 2015

XXXI- Preconceitos

Certa vez uma amiga da minha irmã chegou em casa e começou a observar o gato, que estava na dele estirado no tapete. Verão carioca e o bichinho aproveitava o vento que vinha exatamente abaixo do ventilador. E, depois de um tempo ela solta:

- Nossa, tenho medo de gatos. São traiçoeiros. Não podemos confiar neles.

E minha mãe, como a típica dona de bicho já soltou: traiçoeiro é o ser humano. Tenho mais medo de gente do que de um bichinho desses. E tomou birra da garota.

Engraçado que sempre gostei de gatos. Em princípio eles eram, quando criança, uma alternativa ao meu medo de cachorros (que guardo de certa forma até hoje). E com o tempo fui me afeiçoando a eles.

O Rafael já apareceu na minha vida quando já estava no começo da vida adulta, bem como a irmã dele, a Catarina. E sim, percebi que eles têm aquele jeito mesmo de ficar na deles, mas sempre observei o quanto eles queriam ficar perto da gente e no quanto miavam quando alguém saía de casa.

A Catarina em especial sempre foi mais apegada comigo. Ela sabia exatamente a hora que eu acordava, mesmo sem eu me levantar da cama e com a porta do quarto fechada.  E assim foram 14 anos felizes com ela, que morreu há quase dois anos. Rafael acaba de completar 16 anos.

Interessante que ao conviver com eles fui percebendo aos poucos como eles são. Me desfiz também de certas ideias sobre eles e vi o quanto eles podem ser também apegados, como eles miam para chamar a atenção e tudo o mais. A convivẽncia, o tempo e a observação do comportamento deles permitiu que uma série de coisas fossem percebidas. Coisas que eu não tinha reparado antes.

Usei o mote dos meus gatos para perceber o quanto por vezes sou chato com determinadas coisas. Que por vezes, assim como a amiga da minha irmã, eu tomo bronca sem ter dado a oportunidade de entender um pouco mais.

Claro que não quero cair num relativismo absurdo. Cada um tem seus limites. A pergunta é: até quando isso se torna uma impossibilidade de descobrir o novo e, em caso mais extremos, até que ponto ideias pré concebidas acaba nos tornando violentos, desprezando o que não está dentro da nossa lista de coisas que consideramos certas, bonitinhas e tudo o mais?

Obviamente não estou aqui fazendo um texto para discutir preconceito e discriminação na ordem social (machismo/misoginia, racismo, lgbtfobia) tão na ordem do dia das redes sociais e que mexem comigo também. Estou falando de questões mais internas, aparentemente banais, que no fundo devem ter relações com esses outros grandes temas que mencionei anteriormente. Enfim, para esses dias de auto análise, esse é um ponto que não posso deixar de fora.

domingo, 19 de abril de 2015

XXX- Alteridade

Inicialmente o título desse texto seria ansiedade. Depois mudei de ideia ao perceber que eu abordaria apenas um aspecto da minha vida que se relaciona com ela: o olhar do outro.

A primeira vez que vi essa palavra foi curiosa. No ensino médio tive que ler São Bernardo do Graciliano Ramos, só que eu, por mais que goste de ler, eu também era um adolescente que por vezes não tinha saco para os clássicos da literatura. Daí que o tempo foi passando e na véspera da prova eu só pude ler o começo do Romance.

O que eu fiz então? Comecei a ler aquela resenha crítica de 30 páginas de algum crítico literário, que sempre tem nesses livros (e que outros adolescentes dificilmente teriam saco pra ler) para ver o que era dito. Sim, o texto do Graciliano era melhor, mas não era apenas 30 páginas.  O objetivo era pegar todos os jargões ali ditos e com a minha imaginação em encaixar tudo com tudo, usar aquela análise e usá-la na prova.

Deu certo. E o ensino se provou que mais que fazer com o que o aluno se interesse pela leitura, quer que ele regurgite coisas ditas pelos críticos. Mas esse é outro assunto.

E uma das palavras que aparecia era essa: alteridade. Achei bonita e tasquei onde podia na prova.

Eu iria fazer uma análise mais profunda de como por vezes minha ansiedade aumenta pelo olhar do outro através de dois exemplos. O primeiro é de como eu me importo com o que os outros podem pensar de mim diante de algum comportamento meu que é reprovado. O outro exemplo seria de como numa situação em que sou ofendido ou posso argumentar claramente contra o outro, eu fico calado e depois me remoendo por não ter dito algo de forma veemente.

Iria, porque sem querer essa anedota estudantil me traz um exemplo muito bom a respeito. A maneira que minimizei, naquele momento, a minha ansiedade diante de um teste no qual o olhar do outro - no caso, o da professora e seus outros, isto é, a teoria literária e educacional devidamente formatada - era o que decidiria minha nota. E como apelei para outros (a crítica nas páginas iniciais do livro) para poder lidar com isso.

De qualquer forma nada existiria se eu não tivesse eu mesmo elaborado um texto para lidar com aquilo. Não foi simplesmente uma cópia. E aí no fim das contas eu penso: se estou ansioso diante da alteridade é porque na verdade isso foi, em muitos momentos, uma escolha minha.

No final de tudo vem outra pergunta: tá, mas que escolhas devem ser feitas para poder lidar com isso?


sábado, 18 de abril de 2015

XXIX- Ausência

Por duas vezes fiquei um bom tempo sem ter um computador por perto. E naqueles momentos o que mais sentia falta era simplesmente de ter um Word da vida para digitar os meus textos.

A falta de internet me fez ter mais tempo para pensar nas coisas. E minha cabeça nesses momentos tinha muitas ideias. Tenho cadernos velhos com textos escritos, alguns já digitados, outros não.

Sempre pensei: nossa, quando tiver de novo com um computador novo, vou escrever muito. E isso não aconteceu.

Aí hoje acabo de ver um filme em que entre tantas coisas, mostra como um casal que vivia brigando, com o marido que batia na mulher entre tantas outras violências, acaba ficando mais próximo quando o filho desaparece. A ausência dele os aproximou. Claro que não estou aqui para defender violência, mas a fala da personagem principal chama a atenção: "só mudaram porque eu não estava presente, estavam mobilizados pela dor".

Talvez a ausência das coisas faz sentir certas dores. E aí acaba movendo a fazer outras ou permite que os olhos passem a perceber o que outrora não era notado. Assim como eu em relação a minha própria imaginação. E escrever é, sem dúvida, a coisa que mais gosto de fazer.

Fica um pensamento importante para esses e outros dias, já que quando eu terminar meu último texto, estará próximo de uma efeméride de uma grande ausência na minha vida: o que fazer com essa e outras ausências? O que poderei criar?


sexta-feira, 17 de abril de 2015

XXVIII- Lembranças

Alguns dizem que tenho boa memória. E eu por vezes penso que não tenho. Sou incapaz de me lembrar de detalhes, de coisas antigas, de como foram determinados encontros, o nome das pessoas. Sou capaz até mesmo de esquecer dos rostos.

Vira e mexe alguém me diz: você se lembra de fulano de tal, dos tempos do colégio. E aí tenho péssima capacidade de me lembrar de quem era tal pessoa. Por vezes o rosto me é mostrado, vejo fotos atuais e até antigas com as pessoas do colégio e nada. Aquela pessoa não foi registrada.

Bate uma certa angústia: por que fulano de tal que andava comigo direto se lembra de tal pessoa e eu não?

Daí me dou conta de que as memórias formam uma espécie de mundo com características próprias de cada um. A leitura que cada um faz do passado apresentará muitas diferenças. Alguma de ordem racional, mas suspeito que o emocional tem um peso enorme nesse sentido.

Por exemplo: me disseram "se lembra de fulana?". Me lembrava do rosto dela, e das pessoas com quem ela andava junto. E só. Naqueles anos que se passaram nunca trocamos nenhuma palavra, nada dela me era mencionado. Era apenar um rosto nessa paisagem chamada "meu mundo de lembranças". E posso sê-lo também nas lembranças de muitas pessoas.

Talvez, pensar em lembranças faz a gente pensar, a exemplo que quando olhamos para o tamanho do universo, de como por vezes nos sentimos tão especiais, mas nessa constelação de pessoas que existem no mundo, em muitos somos apenas paisagens ou sequer existimos. Ainda que tenhamos convivido por um bom tempo. E não há nada de estranho nisso.


quinta-feira, 16 de abril de 2015

XXVII- Novidade

Novidade

É recorrente essa história em meus textos: quando criança, no Jardim de Infância, toda segunda-feira era dia de contarmos as novidades. Aquilo me deixava ansioso e sempre tentava inventar algo. E sabia que alguns dos colegas faziam o mesmo. E quando eu tinha uma novidade de fato, eu acabava mostrando pra todo mundo antes da professora fazer a roda, antes do rito. Acho que isso explica, de certa forma, o meu script que é de todo neurótico-obsessivo: rituais e retenção.

Nova-idade

Sempre gostei das comemorações, sempre curti aniversário. Mas a ideia de que aquela idade é nova, isso vem com o tempo, nunca é no dia certo. Talvez só na minha virada dos 29 para os 30 tenha sentido isso, mas naquele momento muita coisa estava mudando. Casa nova, cidade nova, rompimento de um relacionamento novo. Enfim, gosto quando as idades aparecem como novidade. Deve ser algum tipo de percepção de maturidade que fica retida, depois do rito:o dia do aniversário.




quarta-feira, 15 de abril de 2015

XXVI- Procastinação

No meu pequeno universo, procastinação está associada com rendimento no trabalho e nos estudos. Poderia produzir mais, render mais, estudar mais. Enfim, um "defeito" associado com nossa imersão nessa Matrix.

Resolvi fazer um caminho diferente e listar o que está na lista de procrastinação de prazeres que eu teria realizando determinadas atividades. Obviamente tá no embalo de textos anteriores. Todas elas são acessíveis e não demanda muita coisa para fazê-las. Seriam elas:

- Sair um dia para fotografar o bairro da Passagem em Cabo Frio;
- Conhecer Jaconé e Ponta Negra;
- Subir a pedra da Praia de Itacoatiara;
- Ver e fotografar estrelas à noite na Pontinha do Outeiro;

São coisas que estão ao meu redor, me darão prazer e que ainda não fiz.


terça-feira, 14 de abril de 2015

XXV- Exagero

Tenho um amigo que mora em outro continente que é dado a exageros. Sua posição política é onde isso fica mais característica. A sua forma de colocar e impor suas ideias também, por vezes denota esse exagero.

Mas percebi que nestes exageros, ao longo desses anos de convívio, há muito a ser percebido. E ao mesmo tempo, ter uma visão crítica das coisas. Apesar que o amigo exagero, em certos pontos, não exagera tanto. Enfim, nem mesmo os que são assim estão imunes a sua própria contradição.

E hoje ele usa o termo "nazista" para um espírito do Natal passado. Pode parecer exagerado, mas depois com tempo fui juntando peça por peça. Não acredito que a pessoa seja assim na acepção da palavra, posso ser muito inocente. No entanto é fato que essa pessoa, quando confrontada com certos valores, é daquele tipo que jura que está transgredindo algo, quando na verdade só está exacerbando a norma.

Em um flash me vieram diversas cenas de como ele se comportava como um filhinho de papai mal educado, desses que zoam pedintes na rua. E sei que fez amizade com um tipo equivalente.

Dizem que por vezes só olhamos a capa para depois observamos aspectos mais profundos de alguém. Nesse sentido o processo é inverso. E no frigir dos ovos é importante ver a capa também, já que esta tem a sua ação no mundo e não está separada de como a pessoa lida com suas emoções.

Meu amigo pode estar exagerando, o dito espírito também ou até eu mesmo, por parecer não admitir certas coisas. O importante é que entre um exagero e outro há sempre pequenos cacos, faltas, erros que por um instante passam despercebidos, mas que um determinado grito pode dizer "ei, olhe para ali". E o que era pequeno passa a ser melhor observado. Com ou sem exageros.


segunda-feira, 13 de abril de 2015

XXIV- Barreiras

Esse é um dos meus temas favoritos. E talvez o mais recorrente e profundo para ser pensado nesse isolamento de ideias que antecedem o "Anno XXXVIII".

Vou usar um exemplo simples. Por vezes, de folga, com dias bonitos e tudo o mais eu acabo pensando, mastigando, procastinando e deixo de sair de casa. Moro num lugar que, apesar da degradação ambiental generalizada, possui uma linda natureza. Uma laguna que pra mim é especial pela beleza dela - ainda que maltratada pela poluição- fora os outros tantos lugares que posso visitar sem necessariamente gastar muito. Diga-se de passagem, moro numa das regiões turísticas mais procuradas do RJ.

Mas penso: o que faz essa procrastinação? Pensar pura e simplesmente na preguiça é fundamental e é chave pra pensar no todo. Há um certo gozo em ficar no mesmo lugar, em casa, sem sair, ficar pensando como as coisas poderiam ser ao invés de fazê-las? E por que não fazê-las?

Simples: fazer implica dor. Entendamos como esforço também. Uma pessoa que faz uma trilha pra chegar no ponto mais alto de uma montanha ou morro quer, além da aventura, vislumbrar a paisagem no topo. Só que não é só a paisagem que interessa.

Por vezes penso: qual o sentido de uma pessoa escalar uma montanha alta, por exemplo? E eu digo que querer aplicar um "sentido" nisso é matar uma série de possibilidades. Mais que a mera superação que um futuro livro de auto-ajuda de algum escalador pode fazer em uma palestra após o seu feito. É que diante daquelas dificuldades há novas paisagens, novos aprendizados, uma série de coisas.

A questão é: não queremos abrir mão do conforto. A minha procrastinação vem desse engano.

E como tudo te consequências, tenho como resultado, dessa procrastinação, uma sensação de fechamento, angústia que se converte em agressividade. Existe uma parte de mim querendo a novidade, a escalada, o caminho até o topo da montanha. E não ouvir essa parte faz com que ela se volte contra mim e acabo descontando nos outros.

Então, fica como reflexão principal sobre essas barreiras que imponho a mim mesmo é que elas se comportam como grandes monumentos para evitar qualquer desprazer ou esforço, ou ao mesmo tempo uma transformação de mim mesmo (ainda que eu não acredite em um 'si mesmo'). Só que, diferente do Cavalo de Tróia, o inimigo não vem do lado de fora disfarçado. Ele habita em mim mesmo querendo dar um basta nisso. Nesse sentido, respirar também é fundamental.

As caminhadas, ainda que por vezes se pareçam dar em caminhos repetidos me fazem um bem danado. Porque estou, especialmente quando estou sozinho, em contato comigo mesmo, com novas reflexões. Longe da interferência dos outros (inclusive aquelas da internet) e podendo respirar e sentir de forma tranquila uma série de novas sensações. O doloroso nesse caso é só dar o primeiro passo para se mexer.

Se ouvir o outro é tarefa difícil, imagina ouvir um novo eu?


domingo, 12 de abril de 2015

XXIII- Valor

Eis um tema que, obrigatoriamente, me faz pensar na relação Eu e O Outro. E no repertório que adquirimos.

Alguém me diz que um rapaz tem defeitos de pessoa rica. Achei estranho, porque pelas características que me foram passadas, me pareceu alguém de classe média. Aí me dei conta que na alteridade, o que para um é riqueza, para mim não pareceu. Valores vão de acordo com o repertório.

E um insight poderoso desses dias tem a ver com meus valores, ou como vejo isso em mim mesmo. Não se forma besta, narcisista, que esta é frívola e cai na primeira pedrada da realidade. A não ser que se tenha seguidores afinados com você, mesmo sendo bizarro, tipo um Olavo de Carvalho.

Por vezes menosprezo os meus aspectos físicos, intelectuais e emocionais. Especialmente em uma relação amorosa. Engraçado que na amizade isso não acontece porque há compartilhamento.

Talvez isso seja não a saída definitiva nessa gangorra da alteridade : compartilhar. Por ela valores meus e dos outros podem ser mudados, questionados, aceitos, rejeitados, reformulados. Mas não há espaço para delírio puro egoísta, nem o menosprezo de se, que em mim há muito de farsa e é irmão gêmeo do que tenho de mais egoísta.

sábado, 11 de abril de 2015

XXII- Discrição

"Bicha não pode dar pinta". "Lésbica tem que ser feminina". "Mulher que se dá ao respeito não coloca roupa curta". "Negro não pode gritar, senão é barraqueiro, tem que saber o seu lugar". Tantas coisas que se escuta para esses e tantos outros grupos segregados de poder.

Tenho um amigo que quando ele vai falar das qualidades que ele apresenta de um homem que ele se relaciona ele diz "fulano é discreto". Como se fosse algo de valor, algo obrigatoriamente positivo.

Cada um tem o direito de seguir a vida como quer, respeitando as liberdades alheias. Fato. No entanto não consigo deixar de ver essa fala como problemática, dada a forma como esse amigo se relaciona com outras pessoas em outros contextos.

Suas redes sociais são lotadas de fotos, festas e tantas outras coisas. Todo dia de manhã tem uma mensagem positiva de bom dia para todo mundo. Não vejo esse comportamento como algo "discreto".

O mais engraçado: seu atual marido passa longe, mas muito longe dessa convenção heteronormativa do "discreto".

Wilde dizia que se queremos conhecer alguém, deveríamos dar-lhe uma máscara. Talvez nesse sentido a discrição vira, de fato, uma descrição de algo importante daquilo que a pessoa tenta tanto esconder.

Nesses trinta e sete dias cabe uma reflexão para mim mesmo: quais as minhas dxscrxções?


sexta-feira, 10 de abril de 2015

XXI- Ternura

Faz tempo que não uso essa palavra. No diminutivo é a cantora Wanderléa, que aliás, acho ótima.

Eu pensei em escrever sobre a delicadeza. Mas delicadeza é pouco para dar conta do que estou pensando e sentindo. Porque existem delicadezas que são sociais, fazem parte do convívio. Ternura tem algo sim delicado, tem algo amoroso talvez, ou é mais que amor, ou um pouco menos.
Não me preocupo no momento em situá-la.

Deve ter sido o filme que vi. Falava tanto de relações familiares e de outras pessoas com outras, fora do ambiente familiar. Uma pequena cidade antiga no interior da Itália.

Outro dia pensava em carência. Em como a obsessão por vezes impede de ver certas coisas. Uma preocupação única em satisfazer o ego "ei, estou aqui, me ame, me adore!". Na ternura talvez não tenha isso. Ternura é um dado de sensibilidade também, é intensa, mas vem de mansinho. Está em coisas aparentemente mais simples. E ela gosta dessa aparência, não precisa de grandes gestos. Há uma simplicidade grande nela.

E me dou conta de que há tempo não sentia. Mas talvez ela venha como uma febrinha baixa, como a de um resfriado que sinto agora. Incomoda, deixa a gente dentro de casa, mas não impede de fazer tudo, não derruba.

Já dizia a personagem do filme ainda que uma bala perdida, mesmo que não acerte, causa um desarranjo que é necessário. Não temer o erro faz com que sigamos os nossos desejos, a nossa felicidade. Não acredito em felicidade plena, mas com ternura, ah, tudo fica mais bonito sim.


quinta-feira, 9 de abril de 2015

XX- Expectativa

No começo da vida amorosa, ele me dizia: você cria muita expectativa e por isso você se frustra. Nem sempre as coisas saem do jeito que a gente quer.

O clichê faz sentido, quando a coisa não depende da sua ação, diante da ação do outro. E o resultado disso foi imobilidade.

Sempre fui do tipo que não espera grande coisa no futuro. Exemplo: quando mais novo temia uma nota baixa, mesmo sabendo que eu tinha ido muito bem. Achava que por uma intervenção divina eu iria me ferrar. Também tinha o fato de que, quando sabia que iria bem, eu criava a expectativa da perfeição.

Esse é o drama do pessimismo para o futuro. As expectativas são varridas para debaixo do tapete. Ou melhor, elas estão ali, só que sem luz sobre elas. Como uma luz de holofote, que foca apenas um ponto enquanto os outros estão escuros. Eu sei, essa teoria não é minha, é do Popper.

O fato é que no caso específico do começo do texto, ao colocar luz sobre a expectativa, tudo ganhou mobilidade. A vida amorosa que era começo, deixou de sê-lo e tornou-se fato. Mas não com o homem daquele clichê básico.

E sucederam mais histórias, mais luzes e, principalmente, mais sombras. Ainda bem.


XIX- Instante

No princípio era o Verbo. Temos vários, porque já temos juntos uma história. Parte dela já devidamente aberta e outra, tão forte que guardamos apenas para gente.

Abro a foto que estava guardada no computador. Observo a nossa felicidade e isso também me faz feliz. Você também me parece muito feliz.

A imagem me ajuda. Os momentos mais felizes são tão intensos que percebo um mecanismo de esquecimento em mim. Isso me frustra, pois seria melhor se eu pudesse me lembrar, dentro de mim mesmo, sem ter que apelar para um outro recurso. Um recurso fora de mim.

Penso em algo que pudesse me conectar com aquele dia, mas na memória tudo se parece turvo. Como foi aquele dia com detalhes? Sou incapaz de responder. Eu me lembro de nós dois, perto da água, rindo. E eu fazendo zilhões de fotos.

Porque ao invés de querer de fazer do passado um eterno instante, eu não me torno feliz na sua imortalidade passageira, aquela que depende de eu estar vivo para existir? E mais que instantes, mais que possibilidades futuras, mais que respostas sim e não, mais que possibilidades, eu simplesmente relaxo e penso no que você representa para mim?

Mesmo sendo uma sucessão de imagens quebradas, sobreposição de pessoas, sobreposição de sentimentos.


Mesmo que por um instante...


terça-feira, 7 de abril de 2015

XVIII- Susto

Uma coisa que sempre me amedronta: levar sustos.

Eu me lembro de passar por uma rua em São Paulo e já de cara tapar os ouvidos ao passar em frente a uma casa, onde haviam cachorros que latiam alto e sempre me davam um susto. Aquela surpresa, passando ali de madrugada era algo que, após o susto, me irritava.

Aí sei que em vários lugares fazia o mesmo. Especialmente com ruídos de cachorro.

Depois que me mudei para o interior, tive que aos poucos aprender a conviver com os cachorros, especialmente aqueles que ficam soltos pelo mato.

Mas não é só com o bichinho que isso acontece. Fogos de artifício e bexigas de aniversário estourando me causam sensação parecida.

No caso dos fogos mudou um pouco. Continuo odiando aqueles morteiros que sempre tem um Zé Mané que explode quando seu time ganha ou no ano novo. Pior que aquilo é, de fato, perigoso e traz riscos. Com os fogos em si já nem tanto. Talvez pelo fato de que em vários anos eu aprecie a passagem de ano que esse susto em si passou.

Eis dois pontos interessantes: eu tento de alguma forma domar o meu susto. Se tapo os ouvidos é porque tive a certeza de prever aquele acontecimento ruim (o latido dos cachorros) e evitar que o primeiro latido me tire do meu eixo. No caso dos fogos, consegui de alguma forma ligar isso ao prazer.

Daí onde concluo que, esquecendo o susto e sabendo que os ruídos existem, quem sabe não vem um prazer tão maravilhoso quanto ver os fogos que brilham no reveillon?



segunda-feira, 6 de abril de 2015

XVII- Presença

Esse texto poderia também ser sobre segredos, mas não é esse exatamente o caso.

O rapaz resolve contar para contar para algumas pessoas sobre o seu namoro. Ele não o faz de forma imediata. Fraciona, como na destilação do petróleo. Cada ponto de fusão, um produto. Cada dia a notícia de sua felicidade para uma pessoa diferente. Passados dois meses do início de tanta felicidade, chegou a minha vez.

Lembro-me de quando ganhei minha segunda bicicleta. Tinha 9 anos, acho. Tinha acabado de aprender a andar de bicicleta e aquela foi depois de uma outra, que ganhei com 4 anos e que tinha rodinhas.

Era presente de Natal. Meu pai comprou a bicicleta ainda no começo de novembro, porque ele aproveitou o preço e temia que eles ficassem mais altos. Estamos falando do fim dos anos 80, época de hiperinflação. Só que ele fez o seguinte: deixou a bicicleta dentro da caixa, desmontada, e ela só seria aberta na noite do dia 24 pro dia 25.

Eu passei aqueles meses numa grande ansiedade. Virava e mexia ia para debaixo da cama e ficava contemplando a caixa. Mas eu também não hesitava em abrir. Não só pela ordem do meu pai, mas também para não perder a graça. Temia que se abrisse logo de cara, no dia 24 de dezembro eu não teria absolutamente nada novo para abrir, nenhum presente e assim perderia a graça.

E foi assim até o dia 24, quando abri a bicicleta e meu tio, que trabalhava no prédio em que morava de madrugada, montou pra mim.

Volto ao caso do rapaz. Não posso inferir sobre os motivos para que o seu namoro só fizesse presença agora. Costumamos conversar sobre vários assuntos, trocar ideias, mas ele preferiu deixar agora, numa sequência de coisas a serem ditas. Aconteceu há dois anos quase situação parecida da minha com a dele, mas sem tanta espera ou preferência sobre a ordem para quem eu iria comprar.

O comportamento dele me parece um pouco com o meu com a bicicleta. Um presente - já que ele me diz que encontrou a pessoa ideal de sua vida- que não pode ser aberto de cara. Não tem motivos, nem cabe aqui discuti-los.

Só penso mesmo como por vezes só deixamos os compartilhamentos para momentos determinados, seja no Natal ou em determinadas conversas. E mais que uma resposta, fica uma pergunta: quando e como nos podermos nos fazer "presentes"?




domingo, 5 de abril de 2015

XVI- Desconstrução

Penso naquele pastor fundamentalista. Seus defensores dizem que ele tem o dom da palavra, que é muito inteligente, que ele se expressa muito bem e tudo o mais. Até mesmo alguns de seus opositores afirmam isso, inclusive dizendo que é essa a razão dele ter muitos seguidores. Mas tudo o que ele faz é gritar ao invés de falar e, tomados por essa agressividade, achamos ele foda. Mas não é.

Talvez uma maneira de estar no mundo é nomear tudo. Sendo que muitos desses nomes já vêm dados. E junto com esses nomes estão atribuídos uma série de significados. E ao usá-los os incorporamos para a construção da própria identidade. 

Mas essa nomeação é uma construção. E essas construções não existem para ficarem imóveis, eternas, na medida em que as coisas vão mudando. A  percepção de mundo muda também, seja no decorrer de toda história humana como bem na própria história individual.

A tarefa mais difícil deve ser a de desconstruir. Desfazer. Pessoal das humanas gosta disso. Não é à toda, já que temos uma palavra para nos definir: humano. E a tarefa é: tá, o que fazemos com isso agora?

Lembro-me de um amigo que adora zoar clichês ditos em entrevistas ou em perfis de redes sociais. Um deles é esse: definir é limitar-se. Paradoxalmente, na maioria das vezes que vejo essa frase é mais uma tentativa paradoxal de ser exatamente a mesma coisa, quase um dogma, como aqueles proferidos pelo pastor que berra em seus cultos.

E quando penso nesse berreiro todo, vejo que é justamente pela necessidade de construção de uma grande muralha, o berro como forma de evitar quaisquer questionamentos. E num mundo em que se valoriza a agressividade dos homens como forma de expressão de virilidade e inteligência, fica fácil agir dessa forma. Vão se somando ao sermão palavras que construímos e tomamos como certas.

Por vezes também essa desconstrução a qual somos tão arraigados afeta internamente. E dependendo do grau, acontece uma verdadeira implosão. Só que há sempre pedaços que resvalam com quem estamos nos relacionando. Há algo explosivo nisso também, porque por diversas vezes , há de se desconstruir ideias que fazemos das outras pessoas.





sábado, 4 de abril de 2015

XV- Entrega

Tem uma cena no filme "O Padre" em que uma personagem diz ao tal personagem em questão: quem deu a salvação foi Judas, não Jesus, já que sem ele os acontecimentos que levaram à ressurreição e tudo o mais não aconteceria.

As duas personagens representam a entrega. Um para salvar a si mesmo para ter vantagens e o outro para a salvação de todos os pecados da humanidade. Isso me faz pensar em outras entregas que fazemos, condicionando responsabilidades nossas aos outros.

Penso numa discussão recente muito forte e daí vi o quanto dessa discussão tinha de comportamento meu nisso querendo a devida atenção. Só que eu não posso sucumbir o meu desejo à vontade do outro responder àquele desejo ou não.

Reclamamos de muita coisa, de falta de atenção, da pessoa que não disse um "bom dia" como queríamos, da pessoa que não nos atende naquele exato momento, da data do aniversário que foi esquecida, entre tantas outras.

O pior que como consequência é que, ao perceber que essas entregas de responsabilidades emocionais aos outros acaba por fim fazendo que se entre numa espécie de círculo vicioso no qual o que é sacrificada é a própria vontade, a capacidade em resolver aquilo, tudo por um desejo sádico passivo-agressivo de se recusar ao seu próprio devir.

Talvez o caminho de acusação seja o mais fácil. No frigir do ovos, ao se fazer tal atribuição, estaremos, assim como Pilatos, lavando as nossas próprias mãos.



sexta-feira, 3 de abril de 2015

XIV- Culpa

Eu tenho uma vasta coleção mental de livros que tenho que ler, bem como filmes. Um desses livros é "O Assassinato de Cristo" do Reich. Pelo pouco que sei, ele coloca, com base na psicanálise, que a sociedade ocidental carrega a culpa pelo assassinato de Cristo, como se fosse algo coletivo que está em nossa civilização.

Aprendi, nos tempos do grupo da perseverança que essa era a época de se confessar. De todos os sacramentos católicos, a penitência deve ser a mais paradoxal. Você vai lá, conta seus pecados pra um homem que faz o papel de representante de deus na Terra, ele escuta e em função disso ele dá sua penitência, as aves-maria e os pai-nossos e por aí vai. O paradoxo reside no fato de que, se por um lado é absurdo ter um cara e você ter que dizer a ele sobre algo tão íntimo, por outro tem alguém ali te ouvindo.

Meu primo, evangélico pentecostal, dizia que se incomodava com essa imagem de Cristo pregado na cruz, como os católicos colocam. Ele gosta de ver um Jesus que ressuscita no terceiro dia e é vitorioso, pisa em cima do diabo e é maravilhoso.

Além dessa diferença eu sempre pensei no modo como o protestantismo lida com isso de uma forma geral. Penso: ali pelo menos você não tem que ficar contando seus pecados para alguém, não tem intermediário, tudo é resolvido direto com a divindade.

Toda vez que faço um mergulho emocional lá está a culpa, esse vício que aprendi no catolicismo. Ela é uma forma interessante não só de dominação política que a Igreja Católica usou, mas também responde na consciência e nos corpos. Subir escadas de joelhos, usar cilícios - como aquela personagem de "O código da Vinci- e, a mais eficiente de todas: fazer a pessoa expiar seus pecados.

O mais interessante é que essa premissa inicial de Reich faz sentido. A questão da culpa é tão arraigada, que vejo até alguns amigos ateus compartilhando por vezes desse mesmo sentimento. E de certa forma tanto católicos quanto protestantes sabem usar isso bem. Se católicos se confessam com padre, há protestantes que vira e mexe, vão se consultar com o pastor para ter um aconselhamento. E se eu for mais longe, não é diferente dos chefes espirituais de outras formas religiosas. E há quem desabafe com prostitutas ou com psicanalistas.

No caso desses últimos as coisas estão demodê, porque há pílulas que anestesiam da culpa sem a necessidade de colocar as coisas pra fora, pagar alguém para ouvir a si mesmo. Porém, fico pensando que tudo que é colocado para debaixo do tapete, cedo ou mais tarde aparece e creio que não há pílula que dê jeito nisso. Assim como não há padres, nem pastores, nem pais de santo, ou psicanalistas que também resolva.

Talvez por isso o principal veículo de todos eles, ao lidar com esse grande fundamento que é a culpa, é o exercício da escuta. Mais que ouvir, quando abrimos a boca para colocar palavras que irão explicar e dar sentido ao que se sente, é a nós mesmos que estamos ouvindo. Pelo menos comigo é assim. E como diz uma música que gosto muito "não há lugar para se esconder quando você está gritando por dentro".


quinta-feira, 2 de abril de 2015

XIII- Humildade

As poucas semanas anteriores ao meu aniversário, em geral, são atravessadas pela semana santa. Para mim ela tem sentido (ou tinha) a partir da quinta-feira. 

Em um dia como hoje me lembro do padre repetindo, na missa das crianças, o gesto de Jesus com os apóstolos, no qual ele lava os pés de cada um deles. Então o simbólico do dia de hoje é a humildade: o deus cristão humanizado lavando os pés de seus apóstolos.

Minha formação católica passa por essa palavra. Certa vez, um garoto que estudava comigo e era meu vizinho quis me desmerecer de alguma forma. Minha mãe, preocupada, resolveu conversar com a freira que era uma das coordenadoras do colégio a respeito. A freira disse: pode deixar que vou conversar com ele.

Antes da tal conversa, um conselho materno: ela vai falar de humildade. Não seja "humilde". Ela vai usar isso como forma de querer parecer boazinha, mas no fundo vai querer rebaixar você e, de certa maneira querer que você se conforme com as coisas tais como elas são. E ela estava certa: a freira tentou esse discurso comigo, mas não dei trela ao que ela disse. Ainda bem.

Eis uma das minhas birras com certos sistemas e nesse sentido o catolicismo não escapa. E olha que eu estava em uma escola relativamente progressista, toda trabalhada na Teologia da Libertação típica dos anos 80. Ainda assim, com esse discurso de que existem divisões de classe do Santo Marx, havia com ele uma fala de conformidade pela "humildade". E sorte a minha ter, nesse caso, uma mãe atenta a isso.

Não que eu veja a humildade em si como defeito. Tenho pavor de arrogância por exemplo, porque sou capaz de reconhecer que esse é um dos meus piores defeitos. Todavia, percebo o quanto essa palavra é usada como forma de manipular ou ao mesmo tempo dar um ar de santidade a quem se afirma dessa maneira. Isso está incrustado na nossa cultura.

E esse episódio da freira me faz pensar numa frase dita por uma militante feminista negra: "antes de ser de esquerda ou de direita eu sou negra". Pensar nisso é bom, quando ambos os espectros políticos usam isso para manter certas coisas no "status quo". Deixar tudo do jeito que está, mas na "humildade", como costumam dizer os jogadores de futebol.





quarta-feira, 1 de abril de 2015

XII- Choro

Um rapaz de dezesseis, quase dezessete anos conversa sobre praticamente toda sua história de família. Ao comentar sobre o pai, separado da mãe e que vive em outro estado, ele me disse: “eu não tenho frescura, se eu tiver que chorar eu choro mesmo, foda-se. Sou diferente da minha irmã, que prefere não demonstrar isso”. A fala dele me mostra que algo avançou neste sentido, mas em pleno 2015 ainda há resistências ao choro. Comigo não é diferente.

Sempre fui o tipo da criança bobona, do tipo que “só tinha tamanho”. A dor sempre foi muito forte pra mim e creio que, na verdade, sempre tive medo de senti-la. Esse medo por exemplo deve ser a razão pelo não me lembrar de muitos dos meus choros por tristeza ao longo da minha vida.

Por outro lado tem a repressão ao meu chorar. Muitas vezes já me vi em situações em que eu não dispunha de recursos para enfrentá-la, por reprimir minha raiva e chorar ser o último recurso. E ele era devidamente repreendido. Existem duas situações do meu passado que podem ilustrar bem como isso aconteceu.

A primeira foi na praça em frente ao prédio que eu morava. Havia um garoto que cismava comigo, provavelmente porque ele tinha ciúmes da amizade que eu tinha com outro rapaz, poucos anos mais velho e daí ele começou a implicar, fazer o que hoje chamamos bullying e não satisfeito, corria para longe, onde ele pegava os oitis do chão para tacar em mim à distância. E corria para eu não pegá-lo.
Talvez ele conhecesse a minha capacidade de ser agregador, político e colocou o grupo dos garotos contra mim. Eu, sem recursos, o xinguei, corri para casa e chorei. E fui devidamente repreendido pela minha mãe por não ter sido “homem” e não partir para a briga.

Essa mesma repreensão apareceu depois quando poucos anos depois fui suspenso no colégio por uma gracinha que escrevi no quadro contra um professor bizarro de geografia. Na verdade foi uma suspensão em que 10 garotos foram parar na sala da direção. Tomei um esporro pelo fato de eu ter me entregue junto com os demais para o diretor. Fui acusado de “otário” (uma das palavras que mais detesto) por não ter ficado na minha. E daí comecei a chorar, por me sentir incapaz. Por outro lado isso fortaleceu meus laços com aqueles garotos da sala, já que eu era o CDF que sentava com a “turma do fundão”.

Percebo que choro também em momentos de alegria. Geralmente eles se dão quando estou escutando música, muito comum quando estou viajando de ônibus. Eu me lembro de que após uma crise amorosa profunda, comecei a notar que as músicas da minha playlist falavam sobre o que eu estava sentindo, o que passei e como aquela situação poderia ser superada. Daí essa percepção me tornou alegre, por perceber que no meio daquele turbilhão em mim havia qualidades que me fariam sair daquela situação. E consegui.

Mas não preciso realmente de um motivo específico para chorar ouvindo música. Basta eu perceber a beleza que existe nela, se ela de alguma forma me emociona, mesmo que eu não consigo encontrar as palavras certas para definir que eu sinto.


Por isso deve ser o meu choro uma forma de comunicação, sobretudo. De algo que muitas vezes está em mim e que não consigo nomear. O choro é o que escapa do muro da repressão. E, quem sabe um dia, eu terei a mesma coragem em admiti-lo como o rapaz de dezesseis, quase dezessete anos.


terça-feira, 31 de março de 2015

XI- Desapego

Entender o desapego não é difícil. Não é difícil entrar na cabeça porque certas coisas, comportamentos e relações podem e devem passar por isso. O problema todo é como fazer isso e porque ainda assim insiste-se em certas coisas.

Penso no processo do desapego. Ele não é uma linha reta na horizontal onde em cada ponto há um fato, que sucede outro e depois outro e assim por diante. Tampouco uma reta diagonal voltada para cima e para a direita, como efeito de algo obrigatoriamente positivo.

Há também a questão do ego. Certas situações passam por tanto investimento, tanta dedicação que no fim se pensa "ei, me dei tanto ao trabalho para fazer e ter isso e agora tenho que me desfazer assim?". É como se desvencilhar, na verdade de uma parte de si mesmo.

Sendo assim desapego é um processo não-linear e de perda. Perda de uma parte do ego que foi investida em algum ponto específico da vida.

Esse tem sido um bom período para praticar esses desapegos. Talvez, o pior de todos, seja aquele de refazer um que já fora iniciado e que por um certo motivo ele para, justamente por causa do ego. A situação no começo é tranquila e depois estimula. Eis que então a resposta soa como indiferença e daí começa o processo de desapego. Mas de surpresa mais uma vez o ego é alimentado e há a sensação de que tudo vai dar certo, Chega a vida e diz na cara: não adianta, não insista, não vai.

Despegar de Outro(s) é, fundamentalmente, um desapegar de si. E permitir-se a seguir por caminhos mais incertos. É longo, é lento, mas é possível.




segunda-feira, 30 de março de 2015

X- Ódio

A primeira vez que escutei essa palavra acho que foi no Jardim da Infância. Creio que uma menina disse isso para alguém e, imediatamente, entendi o sentido dela. Era uma raiva mais intensa, mais forte. Coisas da infância, onde nossos sentimentos são superlativos e ainda não estamos imbuídos de todo o código moral para lidar com esse tipo de coisa.

Dizem que quem retém muito certas coisas pode acabar explodindo. Talvez, por reter tanta raiva, isso acabe acontecendo comigo também. É impressionante a capacidade que eu tenho de sentir ódio por uma determinada pessoa. E nas vezes que senti isso eram, paradoxalmente, pessoas por quem nutri algum tipo de sentimento amoroso. Aliás, creio que nesses momentos comecei a entender o comportamento de Medeia.

Por isso o grande clichê: o oposto do amor não é o ódio, mas a indiferença, fez sempre todo sentido para mim.

Se eu acrescentar apenas duas consoantes à palavra "ódio", acabo formando o meu nome. O nome diz muito a respeito de quem você é, é a sua identidade. E por ironia do destino, se eu fizer aquele jogo de construção e desconstrução de palavras e associá-las com a minha identidade, voilá, esse sentimento aparece. O que ainda preciso entender não é o fato dele aparecer em si, mas o que eu faço com esse sentimento.

Ou, nas palavras de Caetano Veloso: "a gente não sabe o lugar certo onde coloca o desejo".


domingo, 29 de março de 2015

IX- Imobilidade

Por vezes a impossibilidade é uma imobilidade.

Tem um armário horroroso no meu quarto. Não combina com o quarto e toma o espaço da parede. Eu queria um armário menor, encostado em outra parede para deixar essa livre. No entanto ele continua ali, imóvel, no mesmo lugar com a desculpa de que preciso arranjar um certo dinheiro para um armário novo, sob medida, encostado na parede menor e que encaixe tudo aquilo que eu preciso.

Fico sabendo de um sentimento grande e muito intenso entre duas pessoas que se amam. No entanto esse amor não pode ser realizado. Ao invés do preço de um armário novo, ele é tomado pela distância. Um amor imóvel, lotado de circunstâncias.

No entanto há uma tinta nova no quarto. A parede de trás está imantada e, com o planejamento certo, poderá sim o dinheiro aparecer. Só colocar as coisas pra fazer e a mobilidade pode tornar algo realmente possível.

Fico pensando se no amor pode ser assim também.


sábado, 28 de março de 2015

VIII- Respiração

Vejo o vídeo de um o humorista. Observo seu comportamento no palco . Percebo que ele dá uma parada antes de pronunciar uma frase de efeito, que irá provocar o riso. Ele respira e diz o que queria. Risos de plateia e meu também.

A pessoa amada me observa e fala o quanto a minha respiração é apressada. Diz para eu respirar em ritmo mais lento, que isso vai me fazer sentir melhor. Dá uma sensação de asfixia, estranha. Ao mesmo tempo é uma das raras vezes que percebo minha própria respiração. Acho que a última vez que tinha feito isso pra valer foi em uma aula de educação física, em que a professora alternava a mordida em uma maçã e no sanduíche de ricota. Ela sabia respirar.

Por vezes a minha má respiração é consequência da minha ansiedade. Falo rápido, escrevo rápido, como rápido. Outras, penso que ela é causa.

Lembro-me de que depois da observação da minha respiração apressada comecei a nadar. E um dos exercícios fundamentais quando se está na água é esse: saber o tempo certo de inspirar e expirar. E depois de um tempo lidando um pouco melhor com isso, comecei a reparar que isso dava um certo barato na cabeça e eu nadava com mais tranquilidade. E não era tão necessário assim contar quantas chegadas na borda da piscina ainda faltavam.

Usar a respiração como causa. Ouvir mais antes até mesmo de falar. Um exercício que preciso praticar mais. Para mais gozo, mais sorriso e mais baratos. E pode ser entre um naco de maçã e outro de ricota, desde que esta esteja devidamente temperada.


sexta-feira, 27 de março de 2015

VII- Êxtase

Por vezes penso porque tenho medo de certos prazeres. Já pensei em várias coisas, entre elas essas três: medo, não-merecimento e o poder que eles têm. Hoje penso mais sobre esse último fator.

Tenho gostado cada vez mais da fase pós-orgásmica do sexo. Ficar deitado e sentir apenas a onda que acompanha a respiração. Parece que está tudo desligado e aí vem uma força tamanha que me tira do mundo, onde acho que posso controlar tudo e curto apenas àquela onda, podendo me dedicar toda e somente a ela.

Pensei em medo e daí me lembrei de que em momentos extasiantes eu realmente tive dificuldade de me permitir a isso. Uma coisa simples que eu poderia fazer com mais frequência: deitar no chão ao ar livre, olhar para o céu e não pensar em nada. Isso é extasiante. Isso me tira o controle. Isso é poderoso demais.


quinta-feira, 26 de março de 2015

VI- Certeza (s)

Ao pensar sobre a certeza me veio na cabeça a ideia de um girassol. Foi assim, do nada, sem uma explicação lógica no começo, até então ver, em minha própria realidade eu posso vê-la(s) desta maneira.

Eu carrego muitas certezas. Isso me acompanhou a vida toda. Ao mesmo tempo percebi, em um processo bem lento, que todas elas são vulneráveis. E ainda bem que elas são, pois é isso que permite que elas morram, ou mudem para outras certezas que, com certeza serão incômodas. Incomoda porque evita de ver outras coisas além do que tinha sido visto antes. Mas se fosse possível ver tudo, ter todas as verdades sobre todas as coisas, para que então questioná-las?

Pensei nos líderes religiosos fundamentalistas. Carregam com força suas certezas. Por vezes parece que elas se unem em várias para formar uma só. E estabelecer então como uma única verdade para regras serem ditas a tudo e a todos.

Só que o ser humano nem sempre é obediente. Nem aquele que prega certezas. Por vezes estes, aos serem questionados, modificam, relativizam a questão. Sexo antes do casamento? Não pode! Comer crustráceos? Veja bem, naquele tempo as pessoas eram assim....

Por isso pensei no girassol, sempre voltado para a luz. O Sol que aparentemente sempre parece estar ali, que sempre parece que vai nascer no outro dia. E conforme a luz vai mudando de direção, o girassol a acompanha. Como são as certezas, sejas as minhas - em uma busca por descontruí-las às vezes - ou daqueles que se apegam com afinco às suas. 

E no fim de tudo, as coisas morrem: o girassol, o Sol e as certezas. Fruto de uma única certeza  da qual tenta-se sempre fugir: a morte.


quarta-feira, 25 de março de 2015

V- Necessidade

Certa vez um rapaz caminhava comigo. Ele olhava umas casas ainda com tijolos aparentes e, naquele domingo, lá dentro daquela casa a televisão enorme, moderna, passava a programação daquela tarde. Ao observar ele me disse: o que adianta? Essas pessoas querem comprar coisas de último tipo e moram em uma casa nesse estado.

Uma visão mais a direita diria isso: as pessoas pobres querem as benesses do Estado para poder comprar televisão de último modelo. Outra, mais a esquerda, condenaria o capitalismo ao afirmar que ele cria necessidades voltadas para o consumo, nutrindo o sistema, e sem atender as necessidades básicas do cidadão, mantendo assim a desigualdade.

Necessidade é algo da força e é aquilo que nos une. O eufemismo "vai fazer suas necessidades" serve para mostrar o quanto o ato de defecar, entre tantos outros processos fisiológicos, nos une. Porém, para por aí. Existem diferenças sobre onde e como defecar. Até a qualidade do papel, uma vez que existem diferenças entre eles. Isso é da ordem da vontade, do p(h)oder.

Talvez o que aqueles que têm (ou julgam ter) pensam sobre os que não têm é justamente negar a sua vontade. Neste esquema, se você tem dinheiro é lícito ter desejos, ter vontade. É legal ouvir aquela música estrangeira que fala de sexo, porque contraria o sistema. Se o funk diz a mesma coisa, se ele exprime a vontade dos que não têm, é rotulado como baixaria. Pura e simplesmente assim.

Se a pulsão, que é psicológica, é um desvio do instinto, fisiológico, cabe dizer que existem discursos que tentam controlá-lo. Discursos que autorizam quem pode e quem não pode ter vontade. Discursos que dizem onde e como cada um realiza suas necessidades e vontades. Não seria então, pensando nisso, a vontade algo a ser capitalizado?

E ao fazer essa pergunta me lembro de outra feita àquele rapaz: você está fazendo o que? Ah, só trabalhei uma vez em um hotel em uma semana apenas. Tempos depois soube que ele vivia de ficar encostado nos outros, sem fazer nada. Nossa crítica à vontade dos outros pode também esconder as nossas próprias vontades. E cada um usa suas formas, porque não há como fugir dela. Nem da necessidade que nos irmana.


terça-feira, 24 de março de 2015

IV- Conflito

Tenho um certo pavor de conflitos, quando eles me envolvem. Na verdade eu nunca entendi direito como isso se dá. Tem algo sadomasoquista nisso, conjugado com um lado voyerístico que ainda preciso entender melhor.

Na adolescência, quando rolavam as brigas no colégio eu corria para ver e, ao mesmo tempo, batia uma frustração quando os envolvidos eram apartados. Geralmente pelo fato de muitas vezes ter uma posição sobre a situação vista e tinha gana de ver a quem eu dava razão se dar bem. Dar razão a algo irracional, santa coerência.

Com o passar do tempo fui amadurecendo por um lado. Por outro comecei a amortizar os conflitos, talvez por inconscientemente associá-los à brigas, a algo mais forte.  Talvez pelo fato de, por mais que eu saiba que conflitos não significam necessariamente partir para uma solução violenta, há como sombra esse desejo.

Um de meus sonhos me revelou um símbolo perfeito sobre esse lado do meu psiquismo: um muro no qual era extremamente desconfortável estar em cima dele. Hoje, ao lembrar, pensei que nele havia também cacos de vidro.

Se o sonho manifesta desejo, esse muro simboliza o meu estado de ser muitas vezes e, ao mesmo tempo, um desconforto ali. A lembrança falsa do sonho pela presença dos cacos de vidro talvez representa essa violência que associo aos conflitos. E o desejo de que ela se manifeste. Quantas coisas eu gostaria de dizer e não digo, por saber que minha resposta será mais violenta que bomba de hidrogênio.

O grande porém nisso tudo é que essa bomba pode explodir dentro de mim. Ou, na pior das hipóteses, machucar por dentro, por eu tentar atravessar o muro que existe em mim mesmo.


segunda-feira, 23 de março de 2015

III- Exibicionismo

Há os que exibem seus corpos. Nas revistas, nas praias, nas praças, nas calçadas. No vidro da academia de frente para a rua.

Há quem exiba seus filhos, seus primeiros passos, seus primeiros desenhos, suas notas do colégio, o elogio de quem ensina, a posição no enem, o emprego que conquistou, o quanto é bom e ajuda.

Há quem exiba suas coleções: de músicas, de livros, de carros, de roupas, de maquiagens, cervejas, bebidas e tantas outras coisas.

Há quem ache que isso é só na internet, onde há quem exiba suas fotos de comida, de todos os instantes em um país estrangeiro. Ou o status da coisa mais simples como escovar os dentes. E nesse mesmo lugar há quem exiba suas opiniões, os seus compartilhamentos, as suas curtidas.

E no meio disso tudo há ainda exibicionistas de outras opiniões que criticam todos os outros exibicionistas, seja dentro ou fora da internet.

E há quem exiba textos, como é este caso aqui.


domingo, 22 de março de 2015

II- Narcisismo

Eu me lembro de uma vez em que amiga me disse: já parou pra pensar que o masoquista é um tipo de narcisista? Ele é aquele que sofre, só ele sente aquilo e o sádico deve voltar seus olhos a ele.

Anos depois me pego em um surto narcisista desta categoria. Eu me sinto sem atenção e transformo isso em sofrimento. Elejo alguém para ser algoz da minha tristeza, mas nada disso adianta. Sinto que minha tristeza é ignorada. Aliás esse é o paradoxo do narcisista: ele precisa do olhar do outro.

Daí outro amigo me sugere: e se você se mostrar bem? Por que, ao invés de demandar atenção do outro diante do seu sofrimento, você não pega esse momento e  reverta para fazer algo bom? Desfrute, tenha seus momentos e esqueça da outra pessoa. Repare: isso irá incomodá-la.

Então me dou conta que essa experiência, que em princípio é para chamar a atenção do outro para mim, revertendo tristeza em felicidade, no fundo acaba estabelecendo um reencontro comigo mesmo. A ponto do outro nem precisar contar mais.

Ainda bem que o narcisismo tem seus paradoxos...




sábado, 21 de março de 2015

I- Disponibilidade

O texto anarquista aponta falhas do desenvolvimento sustentável. Existe uma cadeia produtiva que invariavelmente termina no uso de um recurso natural, mesmo quando se deseja poupar outro. Segundo o texto, se há um painel solar que economiza fontes poluentes, há uma fábrica que o produz na China que, além de ser poluente e usar recursos esgotáveis, exploram trabalhadores. Mas cá no Ocidente há vista grossa. Se nada é visto, então não há pecado. E ainda se pode ser sustentável.

O desejo meu, o desejo do outro. Quais suas disponibilidade? Que recursos tenho? Se prefiro poupar o meu renunciando a uma dada presença de alguém até que ponto isso não me esgota? Se prefiro colocar pra fora, até que ponto não esgoto o outro.

Esgotar, esgoto... No fim, é apenas o que sobra. Na casa bonita com painel solar, em uma mineradora chinesa, o meu corpo. E matéria serei disponível para outras matérias ou energia, ou seja lá o que for.